sábado, abril 27, 2013

Por que Beethoven é melhor do que funk

Por Nelson José de Camargo*

Um respeitado sociólogo, irmão de um roqueiro bem conhecido no Brasil, declarou a um jornal de grande circulação que o funk carioca é arte de vanguarda. Pode ser desprezado pela elite intelectual, tal como foi no passado certo tipo de música negra norte-americana, que hoje é tida como de boa qualidade.

Afinal, o que é bom e ruim em arte? É possível chegar a um “juízo estético” para definir algo como “bom ou ruim” com base em critérios puramente racionais e objetivos?

Esta é uma tarefa hercúlea, na qual nem mesmo Kant foi bem-sucedido. Mas alguns conceitos formulados pelas Ciências Sociais no século XX podem nos ajudar a resolver esse dilema.

A chamada grande cultura seria apenas um padrão estabelecido por representantes brancos, europeus e homens da Europa. Portanto, é um conceito etnocêntrico, machista, misógino e preconceituoso.

Qual é a diferença entre “civilizado” e “selvagem”? Ora, o primeiro é tudo aquilo que se enquadra no paradigma eurocêntrico, colonialista adotado pelas classes dominantes. O segundo é quem não se submete a esse paradigma.

Assim, a pintura corporal de um grupo indígena deve ser considerada uma forma de escrita, que tem tanto valor quanto as obras de Shakespeare. O rap de um garoto da periferia é uma reflexão tão ou mais profunda do que a Crítica da razão pura; e o funk dos morros do Rio de janeiro é tão bom quanto as sinfonias de Beethoven. Mas a elite retrógada, conservadora e racista se recusa a reconhecer isso.

De acordo com o pensamento politicamente correto, predominante no pensamento ocidental hoje, esta é a conclusão inexorável. Mas um pouco de reflexão filosófica pode nos fazer perceber que a realidade não é bem assim.

As manifestações populares merecem ser valorizadas e respeitadas. Todos os países desenvolvidos e que conseguiram construir regimes verdadeiramente democráticos têm uma cultura rica e variada, que é apoiada não só pelo Estado, mas por instituições civis.

Em segundo lugar, muitas manifestações folclóricas serviram de inspiração para grandes obras da literatura, da música, das artes plásticas e da chamada “grande arte”, cultura erudita, ou seja lá o nome que se queira dar. As sinfonias de Haydn estão repletas de temas folclóricos da Áustria; Guimarães Rosa recriou a fala e as tradições dos recantos do Brasil em sua literatura inovadora; Picasso inspirou-se na arte africana e asiática na produção de suas obras mais radicais.

Em terceiro lugar, há sim uma diferença entre a grande arte e as manifestações populares. É o grau de competência técnica e de habilidades necessárias para sua elaboração. Um garoto da periferia, com pouco estudo, pode perfeitamente fazer, com muita propriedade, uma crítica contundente e lúcida de sua realidade no rap que compõe; mas não estudou literatura grega e latina no original, não conhece as grandes obras literárias da tradição ocidental, e seu texto não tem a complexidade e as nuanças de uma obra de Goethe, por exemplo. Quantos anos o gênio alemão precisou estudar, e quanta coisa aprendeu, para criar o Fausto? Um rap pode ser composto em poucos minutos, de improviso.

Beethoven levou anos para compor cada uma de suas nove sinfonias. Antes disso, teve aulas de composição, harmonia, contraponto, estudou com Haydn, estudou as obras dos compositores que o precederam (Händel, Mozart). Teve que aprender orquestração, a tocar instrumentos. Uma sinfonia é uma obra extremamente complexa, que demanda não apenas estudo, mas domínio técnico e talento para ser criada.

Um funk pode surgir da conversa informal com uma turma de amigos, regada a cerveja. Pode ser um entretenimento para muitas pessoas, mas não exige domínio técnico algum, nem qualquer talento especial. Qualquer pessoa pode criar um funk, mas muito poucos criaram sinfonias como as de Beethoven.

A pintura corporal dos indígenas é uma importante manifestação cultural, e como tal deve ser respeitada. Mas não exige, para sua elaboração, conhecimentos profundos de epistemologia, de lógica, de línguas, de história. Nem exige um questionamento sobre as grandes questões da humanidade, ainda que possa ser reflexo, algumas vezes, de fatos que afetam a vida da aldeia. Em outras palavras, não é preciso ser um grande filósofo para fazer uma bela pintura corporal (ou uma tatuagem), mas somente alguém que assim possa ser chamado teria sido capaz de conceber a Crítica da razão pura.

A patrulha politicamente correta pode não gostar, mas afirmo com a maior veemência: Beethoven é melhor do que funk!

*Nelson José de Camargo é graduado em Jornalismo e Filosofia












Um comentário:

Hailton Santos disse...

A "estética do consolo" como produto da "patrulha politicamente correta" nivela por baixo toda forma de manifestação artística. E é moda pensar desta forma. Por mais que não queiram... Seu texto é verdadeiro.